terça-feira, 25 de dezembro de 2007

CONTRASTES

Depois que o helicóptero das Nações Unidas levantou vôo, uma massa insandecida avançou sobre os alimentos. Os mais fortes entre os famintos conseguiam sair com alguns pacotes. Após a explosão humana desesperada, buscando matar a fome que a matava, restaram pedaços de papel, sacolas plásticas, lonas rasgadas por unhas e dentes. Ignorado e abandonado no terreno extenso, entre o lixo que restara, alguns grãos de arroz, feijão, migalhas de pães, um ser humano ajoelhado, esquálido, chorava sem forças. Uma criança, faminta, pesando o peso de uma pluma, sem forças para emitir qualquer som, comia alguns grãos crus na tentativa de sobreviver. Um abutre observava todo o desenrolar daquela “via crucis”. Ele não estava interessado nos alimentos dos humanos, ainda que precários. Abutre não come grãos. Se alimenta de carne, de animais, sejam racionais ou irracionais. Seu alvo era a criança chorona. Esquelética. Ele sabia que não voltariam para resgata-la. Então, o pequeno ser humano, tentou caminhar sobre o solo pisoteado, com as marcas dos pais, dos amigos, dos parentes que se foram. O abutre soltou seu pio estridente convocando sua família. Diferente dos seres humanos, o abutre não abandona seus filhotes. Ele não é considerado racional. Não pensa. Não sente. Não tem amor. O pequeno homem levantou-se e caiu novamente. As árvores, cobertas de flores, o céu azul anil, as nuvens esparsas, as andorinhas, serviriam como testemunhas. Do que? Há crime em um abutre servir-se das entranhas de uma criança esquálida, faminta, abandonada pelos pais, amigos e parentes, que nem forças tem para fazer soar seu choro na savana? Devemos mandar trancafiar o abutre nos presídios que liberam assassinos em troca de dinheiro? Onde os poderosos, chefões de máfias malditas e nojentas, jamais colocaram seus pés? Onde os personagens dos chamados mensalões deveriam estar? Onde o pobre que pegou um pão na padaria passou quase um ano preso? O abutre inicia seu vôo. Sobe com a corrente ascendente, um vento morno, que evita seu bater de asas. Logo, sua esposa e filhos, aceitam o convite e formam uma bela família a observar o alimento que agora, em agonia profunda, arrasta-se como réptil entre restos de grãos crus, terra solta e marcada pelo pisar firme dos famintos humanos. Então como todas as rapinas fazem, inicia-se um vôo conjunto na direção da presa. O corpo pequeno, imóvel, o abdome subindo e descendo marcando o compasso da vida, espera para ser mutilado, ainda vivo. Saciados, levantando vôo, a família do abutre satisfeita, deixa os restos para os chacais, as hienas, e a vida continua entre os animais. Dramático? Não. Realidade. Abraços.

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